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#EducaçãoEmDebate

EaD e a hora da pandemia - reflexões

Por Vera Bohomoletz Henriques
Ensino à distância

Minha avó paterna morreu de “gripe espanhola”, em uma roça afastada, nos cafundós de Minas Gerais. Deixou meu pai órfão com 1 mês de idade. Como vários primos órfãos, foi criado na casa do avô. Quando o vírus de 2020 chegou, mais de 100 anos depois, para mim parecia uma história conhecida, que muito me impressionava na infância.


Como muitos de nós, a grande crise despertou em mim o desejo de me solidarizar com meus amigos e parentes, com a gente da rua, da minha cidade, do meu planeta. Tenho dado minhas aulas da USP por vídeo. Tenho trabalhado à distância com professores e estudantes das escolas parceiras em projetos. Alguns participam com dificuldade, outros não conseguem participar. Antes das aulas à distância se iniciarem, a USP ofereceu “bolsas internet” para estudantes que não tivessem acesso à internet.


Nunca tive nenhum interesse pela EaD, pois acredito no contato humano, na força da interação direta, do sorriso, do entusiasmo, e também da divergência e da contradição. Mas, neste momento, é o que nos restou para manter a comunicação com nossos filhos, com nossos familiares, com nossos amigos, com nossos estudantes, com nossos colegas. Ainda bem que a tecnologia atual nos permite esse contato. É uma situação totalmente nova, que, embora incomensurável com a tragédia de uma guerra, me lembra uma guerra. Sempre me impressionou a estória, que li na juventude, de um soldado que aproveitava sua única folga de um dia (do front!!), folga trimestral, para visitar a mãe e consertar-lhe o telhado, para que não chovesse dentro da casa. Como? Uma folga de um dia no meio de uma guerra terrível? Usar essa folga para subir no telhado e fazer um conserto, ao invés de ficar agarrado ao colo da mãe? Em tempos de guerra, a lógica da vida é outra, o possível é aceito com alegria de outra natureza.


Devemos aceitar a “imposição” do EaD por governos e dirigentes? É tempo de guerra, penso. Para os trabalhadores da saúde, no próprio front, para os trabalhadores do transporte, do lixo, do comércio de alimentação, para os trabalhadores informais, para os trabalhadores despedidos por seus empregadores, .... Qual é meu papel? Se acredito na força da educação como libertadora, o que sei fazer é manter minhas atividades com os jovens, por sua autonomia a partir do conhecimento crítico, atuante e destemido. Nas condições possíveis e difíceis, em que o desânimo por estar trancado em casa, ou o desespero para sair possa ser amenizado no envolvimento com o conhecimento.


Qual é então a questão com a EaD na quarentena? Penso que a principal é a questão da substituição obrigatória das aulas presenciais. Sem dúvida, os que mais sofrem nesse momento, por falta de dinheiro e mais ameaçados pelo vírus letal, são também os que não terão condições de acompanhar as atividades à distância. E, por isso, participar das atividades à distância da escola não pode substituir as aulas presenciais, mas deve constituir um momento de compartilhamento de conhecimentos que inclui a família, se possível; um momento de experimentar possibilidades de criatividade e autonomia. Várias iniciativas em todo o país [1] vêm defendendo essa posição, que pretende não aumentar ainda mais a desigualdade de oportunidades que caracteriza nossa nação.
Aproveito para fazer uma reflexão. Quando vamos conseguir superar essa situação em que trabalhamos a partir de ordens “de cima”? Poderemos transformar a escola em um espaço rico de aprendizado, que inclui internet para todos, o uso de toda a área da escola para as atividades educativas, espaço externo, cozinha, salas ambiente, biblioteca, laboratório e sala de teatro, uma equipe de professores que trabalhe coletivamente? Acredito nessa possibilidade, como resultado da construção de um novo papel da comunidade de professores, em que nos responsabilizemos coletivamente pelo futuro da educação.


Vejo na história brasileira da saúde pública um exemplo de que isso é possível. Exemplo? Na saúde pública? Nossa saúde pública que é tão ruim?? O SUS, Sistema Único de Saúde, garante acesso gratuito aos serviços médicos a toda a população brasileira de quase 210 milhões de pessoas. O SUS é ruim? Nosso “gigante” ao Norte, tão “bem sucedido” economicamente, não tem nenhum sistema público de saúde para oferecer àqueles que não tem renda suficiente para pagar um plano de saúde: quem é pobre, é fracassado, e deve contar com a própria sorte na hora da doença ou do vírus letal. Talvez nossa situação de saúde, apesar da enorme desigualdade social, seja muito melhor que a dos EUA.


Ao lado da proposta de uma educação básica universal para todos, foi a partir da Constituição de 1988, que o SUS passou a ganhar existência, como resultado da iniciativa de um grupo de médicos sanitaristas que se organizaram ainda durante o processo de redemocratização dos anos 1980 e convocaram a sociedade civil para produzir uma proposta de mudança na saúde brasileira [2]. Entre as conquistas do (tão mal falado) SUS, estão o único programa mundial de vacinação gratuita, o aumento da expectativa de vida dos brasileiros e a redução da taxa da mortalidade infantil, o cuidado com as famílias através do programa Saúde da Família, ou os transplantes renais, ou, ainda, o sucesso reconhecido internacionalmente no tratamento da aids.


A 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília, entre 17 e 21 de março de 1986, diferentemente de suas anteriores, foi aberta à participação da sociedade e contou com a presença de mais de 4.000 pessoas, em 135 grupos de trabalho. O convite à sociedade (50% dos participantes) tinha como objetivo incluir no debate a realidade local e as demandas concretas da população de diferentes regiões do país, de diferentes agrupamentos sociais, através de suas organizações. Trabalhadores de diferentes profissões, canavieiros, pescadores, prostitutas estiveram juntos com médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde para construir uma proposta para a saúde pública brasileira. Foi com base no projeto construído na “Oitava”, como lembram carinhosamente os organizadores da 8ª Conferência, que se redigiu a Carta de 1988, no que toca o programa universal de saúde pública brasileiro.
 

Seria possível algo parecido na Educação? Nosso sonho, ao criar a APEP, é o de construir um espaço no qual possamos olhar para nós mesmos e perceber que, além de fazer a educação acontecer na escola, também pensamos, criamos conhecimento, e temos propostas para a educação transformadora. A APEP foi pensada como a base a ser construída para podermos demandar a participação no planejamento da política pública, seja em nível regional, municipal, estadual ou nacional. Desde nossas primeiras atuações junto ao Encontro USP Escola, ainda como GT USP Escola, trouxemos para os debates pessoas responsáveis ou assessoras, em diversos níveis, pelo desenvolvimento da BNCC, pelo projeto Escola Integral, por propostas da Secretaria Estadual de Educação. O primeiro passo para nos colocarmos à frente da construção de políticas públicas é tomar conhecimento de propostas antes que elas cheguem à sala de aula como imposição, foi o que pensamos. O segundo? Participar da construção de Conselhos de Escola verdadeiros. Mostrar nossos projetos e experiências práticas de sucesso nos SEPEP. Formarmos uma rede de professores que se propõem a serem atores importantes nesta construção. O caminho é longo. Mas já começamos a caminhada. Vamos juntos.


[1] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/professores-e-pais-acionam-justica-contra-ensino-remoto.shtml.Acesso em 04/05/2020.
[2] texto com muitos dados, gráficos e fatos históricos, incluindo os de participação popular na construção do SUS está em https://www.nexojornal.com.br/especial/2020/04/28/O-passado-o-presente-e-o-futuro-do-SUS-para-ler-guardar-e-consultar . Acesso em 02/05/2020.

**Este espaço é reservado para a publicação mensal de artigos de opinião que apresentem experiências e reflexões acerca da educação. O conteúdo do artigo é de inteira responsabilidade do articulista e não reflete, necessariamente, a opinião da APEP.

 

Caso tenha interesse em publicar neste espaço, encaminhe seu texto para: apepeducacaoemdebate@gmail.com

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